sábado, 1 de novembro de 2008

O Grito dos que não têm voz

Zé do Burro: sertanejo (ou catingueiro) pobre, humilde e ignorante. O típico retrato de um homem sem voz, sem atenção e principalmente: sem respeito. Portador e arauto da cultura do miscigenado, duma religião multicoloria com toques de atabaque direcionados ao altar do “Seu Vigário”, que não entende o panteísmo tupiniquim da cabeça do matuto que vê os animais como irmãos, dos santos caseiros que tornam-se deuses primitivos de estupenda força elemental só para por a prova sua fé!
Até uma determinada distância do perímetro urbano, esta cultura heterogênea e o viver religioso, que se dá de forma individual, é respeitada: cada um tem seu jeito próprio de falar com Deus e por onde Zé do Burro passa reafirma para as pessoas, independente da concepção religiosa, a única coisa em que elas podem confiar na vida: a própria fé! Antes de Salvador tudo tem sentido, o caminho é plano e a cruz... “nem pesa tanto assim”. Todos o compreendem, pois fariam o mesmo se fosse com algum deles. E até aqueles que o endeusam sabem que ele não passa de um matuto qualquer, que se torna divino única e exclusivamente pela própria fé. A cada lembrança de um relincho ou do trotar de cascos os passos ficam mais firmes e os ânimos se revigoram. Mas ao adentrar a zona urbana, tudo muda: a cruz agora é bem mais pesada. Quem passa por ele sempre pendura algo em sua cruz: um cordel de um poeta de rua, o letreiro da fachada de um bar, o lenço perfumado de uma rameira, o cordão de ouro de um cafajeste, uma página de jornal escorrendo sangue, o berimbau dum capoeira, o distintivo de um policial, o caruru duma baiana e por ai vai...é o grito dos que não têm voz! Cada um com seus próprios motivos projetam em Zé do Burro suas esperanças, angústias, revoltas, para serem vistas, ouvidas e sentidas por aqueles que os dominam. Ou então projetam sua ganância, oportunidade de atingir (ou exercer) o poder, de massagear o próprio ego. Todos que vêem ou ouvem Zé do Burro estão prestando atenção em si mesmos. A fé não é levada em consideração, tudo é jogo de poder, todos ao redor são pusilânimes, germes excluídos da doença urbana causadas por eles mesmos, sejam eles justos ou injustos.
Zé do Burro grita com todo este peso em suas costas. Mas no fim os gritos se calam, nada mais tem sentido, nada importa, apenas a fé. A morte não é o fim, mas apenas o começo: é quando o coração se abre e todos os véus que ofuscam a visão tombam, nada era o que parecia e a verdade vem a tona, ninguém é salvo, ninguém é condenado. Zé do Burro, o mundo só o ouviu em seu silêncio. Os gritos cessaram, mas o eco de sua voz, Zé do Burro, será ouvido para sempre.

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